O Supremo Tribunal Federal vem reconhecendo a validade do fundamento científico em suas decisões
Para a responsabilização da indústria do tabaco, a União aponta a existência de um nexo epidemiológico que oferece o elemento fático da correlação tabagismo – enfermidade, com propósito de reconhecer os danos coletivos suportado pelo SUS e pela sociedade.
[...] nota-se que a Medicina e a Epidemiologia já foram capazes, durante os anos, de estabelecer uma correlação direta entre o consumo de cigarros e o desenvolvimento de determinadas doenças, especialmente as que embasarão o presente pedido. Com efeito, trata-se de um consenso entre a comunidade científica, para todos os efeitos irrefutável, tendo inclusive sido positivado também pela comunidade internacional por ocasião da CQCT.
O nexo epidemiológico e o fundamento científico têm sido reconhecidos, pelo Supremo Tribunal Federal, como legítimos embasar decisões judiciais.
Um exemplo foi o julgamento da ADI 3931, que arguiu a inconstitucionalidade da Lei 8.213/91, na alteração feita pela Lei 11.430/2006, que previu a inclusão de nexo epidemiológico para a relação entre enfermidade e atividade desempenhada para fins previdenciários. Esta lei está citada na petição inicial da União, como exemplo de incorporação do nexo epidemiológico no ordenamento jurídico brasileiro.
O argumento usado para contestar essa lei é equivalente ao argumento usado pela indústria do tabaco na ação civil pública: deveria existir uma comprovação individual do acometimento de doença em razão da atividade desempenhada, não sendo possível o uso de dados epidemiológicos para tal definição. Tal argumento foi rejeitado e a lei, que institui o nexo epidemiológico, foi considerada constitucional.
Como afirmado, antes da vigência da Lei n. 11.430/2006, na ausência da expedição da Comunicação de Acidente de Trabalho – CAT pelo empregador, era comum atribuir-se ao segurado, a parte hipossuficiente da relação trabalhista, a responsabilidade por demonstrar que a doença que o acometia tinha nexo causal com a atividade desempenhada. Com o advento da nova legislação, esse nexo passou a ser presumido quando constatada relevância estatística no confronto entre a doença e a atividade econômica da empresa.
Trecho de voto da Ministra Cármen Lúcia na ADI 3931
Já nas ADPF 989, 900, 9001, 906, 907 e ADI 7022, o Supremo Tribunal Federal referendou decisões do relator, ministro Luís Roberto Barroso, nas ações contra portaria que proibia o empregador de exigir documentos comprobatórios de vacinação para a contratação ou manutenção da relação de emprego. A decisão cautelar foi fundamentada em pesquisas e nos dados epidemiológicos:
[...] O país e o mundo enfrentam uma pandemia de graves proporções. A enfermidade por COVID-19 mostrou-se altamente contagiosa e é responsável, no Brasil, pela impressionante cifra que ultrapassa 600.000 mortos. As pesquisas disponíveis indicam que a vacinação é uma medida essencial para reduzir o contágio por COVID-19, para minimizar a carga viral e assegurar maior resiliência aos infectados. Em tais condições, é razoável o entendimento de que a presença de empregados não vacinados no âmbito da empresa enseja ameaça para a saúde dos demais trabalhadores, risco de danos à segurança e à saúde do meio ambiente laboral e de comprometimento da saúde do público com o qual a empresa interage.
Trecho de voto do Ministro Luís Roberto Barroso nas ADPFs
Inclusive, a mudança do cenário epidemiológico fundamentou a revisão da decisão, o que indica que o fundamento fornecido pela epidemiologia foi central para a decisão judicial:
[...] Ocorre que, com a alteração do cenário epidemiológico no Brasil e o arrefecimento dos efeitos da pandemia, os motivos que fundamentaram o ajuizamento da ação e a concessão da medida cautelar já não se encontram presentes. No atual momento, a exigência do comprovante de vacinação pelo empregador pode ser reavaliada pelas autoridades administrativas, desde que fundada em critérios científicos.
Trecho de voto do Ministro Luís Roberto Barroso
Merece especial atenção a ADPF 709, que tratou da imposição de medidas emergenciais destinadas aos povos indígenas no âmbito da pandemia de Covid-19. Esta ação gerou decisões fundamentadas em aspectos epidemiológicos e incluiu atores de produção científica, como a Fiocruz, no diálogo para determinação de medidas adequadas. Pelo alcance das determinações, da natureza das obrigações impostas (estruturais) e participação de peritos e experts, é um dos maiores exemplos de provimento jurisdicional baseado em evidências científicas.
[...] Os Povos Indígenas são especialmente vulneráveis a doenças infectocontagiosas, para as quais apresentam baixa imunidade e taxa de mortalidade superior à média nacional. Há indícios de expansão acelerada do contágio da COVID-19 entre seus membros e alegação de insuficiência das ações promovidas pela União para sua contenção.
De fato, da análise de todos os documentos juntados à lide, depreendo, numa análise prefacial ínsita aos pedidos cautelares, que as vulnerabilidades dos povos indígenas agudizam-se com a situação de emergência internacional deflagrada pela pandemia da Covid-19, doença altamente contagiosa, ainda incurável, sem vacina ou tratamento específico. Os dados trazidos na exordial denotam uma taxa de mortalidade dos índios muito acima daquela que se verifica no restante da sociedade envolvente, de aproximadamente 9,6% contra 5,6% detectada em relação ao restante da população. É urgente, portanto, a tomada de medidas emergenciais, que assegurem a sobrevivência dessas comunidades.Trecho de voto do ministro Luís Roberto Barroso na ADPF 709
Por fim, a ADI 6421 também trata de responsabilidade frente a evidências científicas, ainda que pela perspectiva do ato administrativo. Neste caso, o Supremo pontuou que será considerado erro grosseiro, para efeitos de responsabilização do agente público, aquele que ignorar normas e critérios científicos e, com isso, violar direito à vida, à saúde e outros. Estabelece-se, assim, um tipo de nexo de causalidade científico para a responsabilidade do agente público por ato lesivo à saúde e à vida.
[...]
1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância:(i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou
(ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção.
2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente:
(i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e
(ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos.
Trecho de voto do ministro Luís Roberto Barroso na ADI 6421
A mesma lógica de que o consenso científico e os dados epidemiológicos são razões adequadas para aferir responsabilidades, autorizando o Judiciário a impor obrigações, informou outras ações relativas a Covid-19.
ADPF 828, os dados epidemiológicos foram fundamento para suspensão de despejos.
ADPF 672, os dados epidemiológicos foram fundamento para reafirmação da competência de estados na adoção de medidas contra a pandemia.
ADPF 754, as evidências científicas demandam plano de vacinação.
RE 1.267.879 ficou decidido “ser legítimo impor o caráter compulsório de vacinas que tenha registro em órgão de vigilância sanitária e em relação à qual exista consenso médico-científico”.
Neste mesmo sentido, merece destaque voto recente do ministro Alexandre de Moraes que, ao julgar recurso sobre alertas sanitários em propaganda de ultraprocessados, fez o vínculo entre as evidências científicas, as enfermidades, os danos e os impactos orçamentários no SUS:
Não só esses dados são alarmantes em termos da prevenção de doenças e da qualidade de vida população, como também revelam o potencial de afetar negativamente os cofres públicos pela sobrecarga do sistema de saúde com o tratamento das doenças relacionadas ao consumo desses alimentos.
Trecho de voto do Ministro Alexandre de Moraes no ARE 1.480.888
O Supremo Tribunal Federal, como visto, considerou o nexo epidemiológico constitucional e tem incorporado, em suas decisões, o fundamento científico como preceito legítimo para avaliação de obrigações e responsabilidades.
Decisões do Supremo Tribunal Federal reconhecem consenso científico sobre malefícios do consumo de cigarros
O Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar casos que impõem restrições a fabricação, comercialização e consumo de produtos de tabaco, reconhece que as evidências científicas sobre os malefícios do cigarro devem orientar o provimento jurisdicional.
Uma das decisões mais relevantes e históricas do tribunal neste tema se deu na ADI 4874, que tinha por objeto uma norma da Anvisa que restringia o uso de aditivos, sobretudo de aroma e sabor, em produtos de tabaco. O fundamento científico da norma e sua consonância com as evidências científicas foram cruciais para reconhecer a competência da Anvisa sobre o tema.
O conjunto de evidências científicas hoje disponível autoriza a qualificar de incontestável, porque não exposta a margem razoável de dúvida, a premissa fática de que o consumo de tabaco acarreta prejuízos de elevada magnitude à saúde dos seus usuários. Trata-se de fato que, na presente quadra da história, não está sequer aberto à discussão. (...)
Associação Médica Brasileira – em Carta Aberta a este STF, datada de 17.11.2016 –, ao externar considerações técnicas sobre o tema baseadas em robustas evidências científicas, alerta que o tabagismo é uma doença que inicia na infância e na adolescência: cerca de oitenta a noventa por cento dos fumantes se tornam dependentes do tabaco antes dos dezoito anos. Por isso, é considerado doença pediátrica. (...)
Um aspecto peculiar do uso do tabaco merece ser desde logo ressaltado por apresentar dificuldade adicional ao equacionamento de questões relacionadas ao seu controle: o uso lícito, normal e esperado do produto é em si mesmo danoso à saúde do usuário. Os efeitos nocivos ao consumidor não constituem riscos marginais ou laterais, cuja concretização dependa de suposto mau uso, de imperícia, de condições especiais de uso, ou da conjugação com um evento fortuito ou incerto. Tais efeitos nocivos são consequências diretamente esperadas do uso regular do tabaco.
Trecho do acórdão na ADI 4874. Relatoria da ministra Rosa Weber. Pleno, j. 01.02.2018, DJe 01.02.2019
E no tocante à liberdade de iniciativa, destaca-se o item 7, da respectiva emenda do acórdão proferida na ADI 4874:
7 . A liberdade de iniciativa (arts. 1º, IV, e 170, caput , da Lei Maior) não impede a imposição, pelo Estado, de condições e limites para a exploração de atividades privadas tendo em vista sua compatibilização com os demais princípios, garantias, direitos fundamentais e proteções constitucionais, individuais ou sociais, destacando-se, no caso do controle do tabaco, a proteção da saúde e o direito à informação. O risco associado ao consumo do tabaco justifica a sujeição do seu mercado a intensa regulação sanitária, tendo em vista o interesse público na proteção e na promoção da saúde.
Em julgamento recente sobre a mesma questão, em sede de repercussão geral no STF (ARE 1.348.238), iniciado, porém ainda não terminado, o ministro relator Dias Toffoli ressaltou que:
Como se nota, a RDC nº 14/2012 encontra-se fortemente corroborada por estudos e análises técnicas da agência reguladora, a qual restringiu o uso de aditivos em produtos derivados do tabaco comercializados no Brasil como forma de diminuir a atratividade do produto, especialmente entre crianças e adolescentes”.
“... não existem níveis seguros para o consumo de produtos fumígenos derivados do tabaco – o uso normal, regular e esperado é, em si mesmo, nocivo à saúde, conforme já assinalado. Com ou sem aditivos, os produtos fumígenos contém nicotina, substância de incontroversa nocividade à saúde, causadora de dependência física e psicológica, e componente do próprio tabaco. A nicotina, por si só, justifica a existência de um rigoroso regime regulatório sobre os produtos derivados do tabaco, que se revela legítimo e necessário em prol da proteção à saúde que a Constituição impõe a todo o Poder Público”.Trecho do voto do ministro Dias Toffoli no ARE 1.348.238
Em 2022, em outra decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, julgou improcedente a ação movida pela Confederação Nacional da Indústria (ADI 3311), em que pretendeu a declaração de inconstitucionalidade da restrição da propaganda comercial e do uso de advertências sanitárias nas embalagens de produtos de tabaco, previstos na lei 9.294/1996.
No acórdão, o Tribunal reconheceu que o “desenvolvimento científico da matéria deixou cada vez mais claro que o fumo se colocava como problema de saúde pública”, e reconheceu o histórico do controle do tabagismo no Brasil e a evolução das evidências científicas sobre os danos do tabagismo, e validou a regulação da publicidade e das advertências sanitárias atualmente vigentes no país. Seguem trechos destacados:
Em 1988, a Constituição Federal estabelece que a propaganda do tabaco, entre outros produtos, estará sujeita a restrições legais e advertências de seus malefícios (art. 220, § 4º). Além de prever que a saúde deve ser tutelada mediante políticas públicas – sociais ou econômicas – que busquem reduzir os riscos de doenças e outros agravos (art. 196). (...)
O impacto da saúde é tanto direto, sobre as pessoas fumantes ativas e passivas, como indireto, na medida da escassez dos recursos públicos destinados ao sistema de saúde. Ilustrativo, nesse sentido, o acordo firmado pelos estados americanos com as empresas tabagistas em 1998 (Master Settlement Agreement), prevendo pagamentos mensais sem termo final, considerando os gastos públicos com as doenças relacionadas ao tabaco. (...)
Mundialmente, estimado pela OMS que o gasto público com saúde, para o tratamento de doenças relacionadas ao fumo, foi de 422 bilhões de dólares em 2012, o que, somado ao custo econômico consistente na perda de produtividade em consequência do tabagismo, totaliza 1,4 trilhão de dólares naquele ano.
No Brasil, estimativa calculada em pesquisa de doutorado junto à Escola Nacional de Saúde Pública aponta, considerando as despesas de 2005, atualizadas até 2006, gasto anual do SUS que alcança R$ 338,6 milhões, apenas com internamentos e quimioterapia, para tratamento de 32 doenças relacionadas ao tabagismo, incluindo câncer e doenças respiratórias e circulatórias, em pessoas com idade superior a 35 anos. Do que 33,85% dos recursos estimados (i.e., R$ 114,6 milhões) seriam para tratar neoplasia.
AS RÉS
As rés do processo são: SOUZA CRUZ LTDA.; BRITISH AMERICAN TOBACCO PLC, pessoa jurídica estrangeira, controladora da empresa SOUZA CRUZ LTDA.; PHILIP MORRIS BRASIL INDÚSTRIA E COMÉRCIO LTDA.; PHILIP MORRIS BRASIL S.A., pessoa jurídica estrangeira; PHILIP MORRIS INTERNATIONAL, pessoa jurídica estrangeira, controladora das empresas PHILIP MORRIS BRASIL INDÚSTRIA E COMÉRCIO LTDA e PHILIP MORRIS BRASIL S.A.
CAPÍTULO DO DIREITO
CONVENÇÃO-QUADRO PARA O CONTROLE DO TABACO E SUA APLICABILIDADE Diretrizes
CONTESTAÇÃO DA BRITISH AMERICAN TOBACCO – BAT
PRELIMINARES MÉRITO PEDIDOS Menu de alternância de hambúrguer 12 DE