A presente demanda trata, também, do fenômeno da globalização da responsabilidade, consequência lógica da globalização das atividades empresariais.
Em que pese o cigarro aparente ser um produto “simples”, seu aperfeiçoado pela indústria ao longo dos anos tornou o produto bastante complexo, apresentando características mais aditivas do que nos primórdios da sua existência. Atualmente, a indústria reconhece a utilização de cerca de 600 aditivos na fabricação dos cigarros.
Diante desse risco, o Brasil, em 2012, por meio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) publicou a Resolução RDC nº 14/2012 que, entre outras questões, proibiu a importação e a comercialização de produtos fumígenos derivados do tabaco que contenham aditivos com efeito e objetivo de realçar o sabor ou o aroma do produto. A norma, no entanto, até hoje não chegou a gerar seus efeitos esperados em razão de uma forte atuação da indústria na Justiça brasileira.
Ainda que o uso do tabaco tenha origem antiga, sendo consumido já pela população indígena das Américas, foi ao final do século XIX, com o início da produção em massa e das campanhas de marketing das fabricantes que se popularizou e passou a ser consumidor e larga escala, chegando à situação atual de pandemia. Além dessas campanhas de marketing promovendo a aceitação social do uso do cigarro, o produto em si passou por uma série de reformulações para torná-lo mais agradável e de amplo acesso.
O uso do tabaco leva a uma doença caracterizada por forte dependência química à nicotina.
O TABAGISMO
Em publicação, a Associação Médica Brasileira destaca:
- Existem três aspectos principais que caracterizam a dependência a uma droga: compulsão, tolerância e síndrome de abstinência;
- Todos os aspectos acima indicados estão presentes na dependência à nicotina. Quando se para de oferecer nicotina ao cérebro, esse reage, e o fumante apresenta sintomas e sinais desagradáveis;
- São sinais desagradáveis decorrentes da abstinência ao tabaco: irritabilidade, tontura, cefaleia, agressividade, tristeza, ansiedade, dificuldade de concentração, vertigens, distúrbios do sono e, principalmente, forte desejo de fumar, a chamada ‘fissura’.
- Os sintomas acima apontados caracterizam a chamada síndrome de abstinência da droga nicotina, e têm início apenas algumas horas após a abstinência, tendo sua intensidade aumentada nos quatro primeiros dias.
Cientificamente, o tabagismo uma é doença crônica recorrente – uma dependência química -, na qual o fumante tem a necessidade tanto física quanto psicológica de usar a nicotina, que é uma potente substância psicoativa, estimulante do sistema nervoso central capaz de alterar o estado de consciência do seu usuário. O seu uso decorre do fato de o tabagista não suportar a queda do nível de nicotina na corrente sanguínea, condição que gera grande desconforto e sintomas de abstinência.
Já no tocante ao início do consumo, circunstância deve ser levada em consideração é a idade em que a população, em média, inicia o consumo. Dados revelam que, mundialmente,
80% a 90% dos fumantes adultos iniciaram o tabagismo durante a adolescência, e dois terços tornaram-se fumantes regulares antes dos 19 anos de idade.
Merecem destaque os dados divulgados pelo Instituto Nacional do Câncer (INCA) de que 16 anos é a idade média de iniciação ao tabagismo no país. Importante salientar ainda:
Que o tabagismo acomete principalmente populações de pior situação socioeconômica, baixo nível educacional e indivíduos socialmente mais vulneráveis;
Que, em que pese bem demonstrada a inaplicabilidade do argumento da autonomia da vontade no ato de fumar para fins de responsabilização da indústria em demandas individuais, é importante ressaltar que no presente caso não se está a tratar de uma análise individual de cada fumante (demandas de consumo), mas sim de demanda em que a União, como provedora de um sistema de saúde universal, é demandada por uma série de custos associados ao consumo de cigarros;
Que, por não se tratar de uma demanda de consumo, o livre-arbítrio de uma massa consumidora é questão que não se mostra relevante para a solução da lide;
Que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o tabagismo é a principal causa de morte evitável no mundo e os produtos de tabaco são os únicos produtos legais que matam cerca de 50% dos seus consumidores;
Que o Supremo Tribunal Federal (STF), na ADI nº 4874/DF, foi categórico ao afirmar a incontestabilidade de que o consumo de cigarro causa graves danos à saúde. Em palavras da Relatora, Ministra Rosa Weber: “O conjunto de evidências científicas hoje disponível autoriza qualificar de incontestável, porque não exposta a margem razoável de dúvida, a premissa fática de que o consumo do tabaco acarreta prejuízos de elevada magnitude à saúde dos seus usuários. Trata-se de fato que, na presente quadra da história, não está sequer aberto à discussão.” A Ministra Relatora ainda teve a oportunidade de destacar um “aspecto peculiar” que distingue o cigarro de qualquer outro produto e que, também por isso, demanda a internalização da externalidades negativas pela indústria que lucra com a sua fabricação e comércio, a saber: “o uso lícito, normal e esperado do produto é em si mesmo danoso à saúde do usuário”, já que, com efeito, o cigarro é o único produto que não possui forma ou quantidade segura de consumo e mesmo com “moderação” expõe o usuário e aqueles que têm contato com sua fumaça ao risco de contrair uma série de doenças.
A partir das conclusões dos Relatórios do Surgeon General de 2014, pode-se afirmar que existem evidências suficientes de que o tabagismo causa as seguintes doenças:
1. câncer de bexiga
2. câncer de colo do útero
3. câncer colorretal
4. câncer de esôfago
5. câncer de rim
6. câncer de laringe
7. leucemia mielóide aguda
8. câncer de fígado (carcinoma hepatocelular)
9. câncer de pulmão
10. câncer de cavidade oral e faringe
11. câncer de pâncreas
12. câncer de estômago
13. aneurisma da aorta abdominal
14. aterosclerose / doença vascular periférica
15. doença cerebrovascular
16. doença coronariana
17. tuberculose
18. doença pulmonar obstrutiva crônica
19. pneumonia
20. diabetes
21. catarata nuclear
22. degeneração macular neovascular relacionada à idade e atrófica
23. fratura de quadril
24. periodontite
25. baixa densidade óssea após a menopausa
26. úlcera péptica (em portadores de helicobacter pylori)
27. artrite reumatoide
A União, atuando nesta demanda num juízo de absoluta certeza científica, delimita o seu pedido ressarcitório, portanto, às doenças mencionadas pelo relatório do Surgeon General de 2014.
TABAGISMO E FUMO PASSIVO
O termo poluição tabagística ambiental refere-se à contaminação do ambiente pela fumaça exalada pelo fumante e por aquela oriunda da queima do produto derivado do tabaco, no caso, o cigarro. Segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA):
1. A fumaça produzida pela queima do cigarro contém, em média, três vezes mais nicotina, três vezes mais monóxido de carbono e até 50 vezes mais substâncias cancerígenas do que a fumaça que o próprio fumante inala;
2. A exposição involuntária à fumaça do tabaco pode acarretar desde reações alérgicas (rinite, tosse, conjuntivite, exacerbação de asma) em curto período, até infarto agudo do miocárdio, câncer do pulmão e doença pulmonar obstrutiva crônica (enfisema pulmonar e bronquite crônica) em adultos expostos por longos períodos;
3. Em crianças, o chamado “fumo passivo” aumenta o número de infecções respiratórias.
O CONTROLE DO TABACO NO BRASIL
O Brasil tem se destacado no cenário internacional por suas políticas públicas de controle do tabagismo, que têm apresentado resultados positivos no âmbito da saúde pública, colocando o país como referência mundial de sucesso para redução de prevalência do tabagismo em países de baixa e média renda.
Dentre as medidas adotadas pelo Brasil, destacam-se:
• as advertências sanitárias, a partir de 1988, atualizadas em 2017;
• o aumento de impostos sobre produtos fumígenos, a partir de 1990;
• a proibição de menção ao tabaco em revistas e publicações direcionadas a crianças pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 79 da Lei nº 8.069/1990);
• o advento da Lei nº 9.294/1996 e as que lhe aprimoraram, com medidas para restringir o fumo em locais fechados e a propaganda comercial de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou qualquer outro produto fumígeno;
• a proibição de aditivos em cigarros estabelecida pela ANVISA, em 2012, através da Resolução RDC nº 14/2012;
• a assinatura e a ratificação, pelo Brasil, da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT) da OMS – internalizada e promulgada pelo Decreto nº 5.658/2006, pela qual o Brasil, em conjunto com mais de 180 países, assumiu, entre outras, a obrigação de adotar medidas relativas à responsabilização da indústria do tabaco (art. 19)
CUSTOS DO TABAGISMO COMO EXTERNALIDADE DA ATIVIDADE ECONÔMICA DAS RÉS
Considerando que:
- As rés integram, dentro de seus grupos econômicos, um duopólio que domina cerca de 90% do mercado formal de fabricação de cigarro no Brasil;
- As rés agem na forma de conglomerados econômicos multinacionais, tendo, efetivamente, controle e remessa de lucros para suas empresas matrizes, sediadas nos Estados Unidos da América e na Inglaterra;
- O Estado, embora tribute o cigarro e essa tributação reverta para os cofres públicos, estudos demonstram que o valor auferido a título de impostos encontra-se muito aquém dos valores despendidos pelo mesmo Estado com as doenças tabaco relacionadas.
- O pagamento de tributos – enquanto obrigação imposta a toda a sociedade, com variação de acordo com a essencialidade (ou não) do produto – em nada se liga à massiva externalidade negativa à saúde pública, decorrente da atividade das rés, não configurando meio hábil de efetuar ressarcimento de danos.
Estudo mostra que em países como a Alemanha, estimativas indicam que, para o ano de 1996, a carga econômica relacionada à prestação de serviços de saúde para o tratamento de doenças tabaco relacionadas foi de 16 bilhões de Euros, e em 2003 esta cifra alcançou 21 bilhões de Euros.
No Brasil, o custo do tabagismo para a saúde pública também é mensurável. Com o avanço científico, atualmente há estudos que conseguem delimitar, em relação a determinadas doenças, qual o percentual de pessoas acometidas que as desenvolvem por causa do tabagismo.
Em relação aos recursos, é possível identificar, por meio do Fundo Nacional de Saúde, quais os recursos alocados a estados e municípios, bem como os despendidos diretamente pela União, por orçamento próprio (por exemplo, para os Hospitais Federais).
A conduta das demandadas através da história
1. Omissão e manipulação de informações
Uma das estratégia mais utilizadas foi a de “criar dúvida”. No processo judicial Estados Unidos vs. Philip Morris, a juíza reconheceu que, de 1953 até pelo menos 2000, todos os Réus repetidamente negaram com consistência, vigor e má-fé a existência de qualquer efeito nocivo do fumo para a saúde, agindo de forma coordenada para montar e financiar uma sofisticada campanha de relações públicas para atacar e deturpar as provas científicas que demonstravam a relação entre tabagismo e doenças, alegando que esta relação permanecia “uma questão em aberto”.
2. Negação do poder viciante da nicotina por décadas
com essa afirmativa, as fabricantes de cigarro utilizaram estratégias variadas para otimizar a administração de nicotina, objetivando o aumento do poder viciante do cigarro, a saber: a) por meio da seleção da folha (a quantidade de nicotina disponível em uma folha de tabaco varia em função dos seus diversos atributos: o tipo de tabaco, a posição da folha no caule da planta e a largura do corte do material de enchimento); b) pela inclusão de aditivos; c) pela modificação do filtro.
Em depoimento perante o Congresso dos Estados Unidos, David Kessler, diretor da Food and Drug Administration (FDA) afirmou que a Souza Cruz patrocinou o “Projeto Y-1”, mantendo por pelo menos dez anos uma fábrica secreta no Rio Grande do Sul para produzir fumo com o dobro da incidência de nicotina encontrada naturalmente na planta por meio de manipulação genética.
3. Utilização de aditivos químicos para potencializar a nicotina
a indústria do tabaco utiliza amônia nos cigarros para facilitar a absorção da nicotina, o que significa que a mesma quantidade de nicotina fornece uma dose mais potente, sendo, portanto, maior a sua capacidade de indução ao vício.
4. Utilização da engenharia do filtro e ventilação como estratégia de marketing
pesquisas científicas, inclusive encontradas nos documentos internos das demandadas, demonstram que essas empresas utilizaram o filtro como estratégia de marketing – sobretudo após o relatório do Surgeon General de 1964 revelar os graves malefícios do cigarro à saúde –, de forma a propagar que o filtro seria uma forma de redução de risco. A tática era difundir a ideia de que o filtro absorvia os componentes nocivos do cigarro: se “Após fumar, o material do filtro fica escurecido, o fumante automaticamente avalia que aquele filtro é eficaz”. Entretanto, a indústria já imaginava que o escurecimento não estava vinculado à “eficiência real do material do filtro”, mas escolheu manter essa impressão, estatuindo que “as vantagens em termos de publicidade e vendas são óbvias”. Conforme colocou a Philip Morris: “A ilusão da filtragem é tão importante quanto a filtragem em si”. Assim, mesmo sabendo da ineficiência do filtro, resolveu investir nessa ideia de segurança, determinando que “qualquer lançamento deve ser por um método de filtragem totalmente diferente, mas não necessariamente mais efetivo”¹.
5. Omissão e manipulação de informações quanto ao fumo passivo
as fabricantes de cigarros e suas associações empresariais, face às evidências internas e à crescente pressão externa, sobre os malefícios do fumo passivo, desenvolveram uma estratégia global de múltiplos braços, entre os quais: a) criação de um instituto de pesquisa; b) criação de um programa visando bares e restaurantes; c) criação de um projeto de consultoria sobre a exposição à fumaça ambiental.
Essas três estratégias globais foram implementadas no Brasil.
6. Marketing direcionado ao público jovem
como os jovens são essenciais para o sucesso da indústria, uma vez que funcionam como reposição àqueles usuários que vêm a falecer ou eventualmente deixam de fumar, há forte direcionamento das propagandas a esse público, inclusive em razão de sua vulnerabilidade. A OMS explica que o marketing do cigarro foca os adolescentes em uma “fase crítica de transição em suas vidas”, quando estão particularmente suscetíveis às promessas publicitárias de satisfação dos seus anseios sociais e psicológicos (por exemplo, popularidade, aceitação dos colegas e autoimagem positiva) através do tabagismo. Considerando-se a faixa etária desses jovens, sua capacidade mental e emocional de assimilar a magnitude do risco inerente ao tabagismo ainda não está amadurecida, sendo, por isso, mais suscetíveis à mensagem de que o tabaco é menos nocivo e mais prevalente do que realmente é.
7. Marketing através de cigarros com sabores
o intento de dar sabor ao cigarro é indisfarçavelmente tornar o produto mais atrativo e atingir o público jovem. As campanhas de prevenção do tabagismo entre jovens desenvolvidas pela indústria são consideradas inefetivas por todas as autoridades de saúde pública, sendo vistas, na verdade, como mais uma estratégia de marketing.
8. Criação da estratégia fraudulenta dos ditos cigarros light
com as descobertas científicas dos malefícios dos cigarros mais evidentes e o desmascaramento das estratégias da indústria publicizados, as rés enfrentaram a sua maior crise. Para reagir a isso, criaram e exploraram a crença equivocada de que se dedicariam à manufatura de cigarros com menor risco à saúde do que os cigarros tradicionais, o que auxiliaria, inclusive, àqueles que tentavam parar de fumar. Surgiram, assim, os chamados cigarros de baixo teor, denominados pela própria indústria como cigarros light, “leves” ou com baixo teor de alcatrão. Tais produtos eram anunciados como “mais saudáveis” do que os cigarros de “teor regular”. Ignorados pelo público, mas claramente documentados nas pesquisas privadas da indústria, esses cigarros “mais saudáveis” em nenhum aspecto eram melhores que os originais — e em aspectos relevantes, eram (e são) piores, já que fumantes de cigarro “leves” inalam com mais intensidade. Foi por entender presente a má-fé da indústria em mais esta estratégia que um tribunal arbitral, ao julgar, em 2016, o caso Philip Morris Brands Sàrl vs. República do Uruguai, encampou as normas de controle ao tabaco uruguaias que visavam a eliminar o marketing ilusório da indústria sobre os cigarros leves, tendo se embasado em farto conjunto probatório global no sentido de que existia “falsa percepção dos consumidores dos riscos à saúde atrelados aos cigarros ‘Light’ e ‘baixos teores’ (também conhecidos como cigarros que ‘garantem saúde’)”.
9. Utilização de cores como forma de propagação do consumo do cigarro light
após constatado o marketing fraudulento da indústria tabagista em relação aos cigarros “leves”, as autoridades de saúde pública adotaram providências, no início dos anos 2000, para proibir termos, rótulos e embalagens sugerindo ilusoriamente que alguns cigarros são menos nocivos que outros. No Brasil, em 2001, através da Resolução RDC nº 46/2001, a ANVISA proibiu a utilização de descritores de marcas de cigarros como os termos light, ultralight e suave (modelo depois adotado mundialmente no Artigo 11 da Convenção-Quadro sobre Controle do Tabaco). Em resposta, as companhias de tabaco passaram a investir nas cores das embalagens para representar variações dentro de uma mesma família de marca. Essa técnica foi tão eficaz que chegou a influenciar percepções sensoriais no momento de fumar: por exemplo, quando os consumidores fumam cigarros acondicionados em maços de cores claras, percebem nesses cigarros um sabor mais leve e menos agressivo que os mesmos cigarros apresentados em maços de cores escuras.
10. Supressão de documentos
as rés envidaram esforços globais para destruir e suprimir provas, pesquisas e demais informações relacionadas aos danos à saúde causados pelo cigarro, ao vício em nicotina e à comercialização de cigarros para crianças e adolescentes, por meio do encerramento e destruição de pesquisa própria e documentos internos.
11. Esforços deliberados contra a regulação estatal
apesar de um discurso supostamente de apoio à regulação do mercado de derivados do tabaco em consideração à saúde pública, as demandadas se engajam em campanhas coordenadas de oposição às medidas estatais, com estratégias que passam pelo lobby contra as medidas, campanhas que utilizam argumentos diversionistas, cumprimento desviado de normas em vigor e, por fim, a judicialização.
¹ No Brasil, a informação de que “A nicotina do tabaco cria dependência física” foi inserida como advertência sanitária nas embalagens de cigarro por meio da Portaria do Ministério da Saúde nº 2.169/94. Como será explanado adiante, essa norma nunca entrou em vigor, por interferência das empresas rés, o que levou à edição de nova Portaria Ministerial, a de número 477/95, que implicou em medidas menos efetivas e excluiu das mensagens a informação de que fumar causa dependência. Tal aviso somente foi incluído em 1999, com a edição da Portaria do Ministério da Saúde nº 695/99.189.
Algumas ações estatais que foram objeto de intervenção negativa/contrária da indústria
Medidas de proteção contra exposição à fumaça ambiental do tabaco
durante o processo de tramitação do projeto de lei que originou a Lei nº 9.294/96, cuja principal medida era proibição do fumo em locais fechados (única medida comprovadamente eficaz para a proteção contra a exposição à fumaça do cigarro), o lobby da indústria atuou de forma muito significativa junto ao Congresso Nacional, o que gerou a aprovação da lei (na sua redação original)², com a permissão dos chamados fumódromos em locais fechados. Como em outros países, a indústria do cigarro criou parcerias com associações de hotéis, bares e restaurantes para evitar a aprovação de leis que exijam espaços 100% livres de fumo, conforme preconizado pela OMS.
Nota: ao incluir o setor hoteleiro no debate sobre a proibição do fumo passivo em ambientes fechados, a indústria tabaqueira utilizou-se do chamado “diversionismo”, pois deslocou a discussão sobre a medida do seu real intento – que era a proteção de todos contra exposição à fumaça do cigarro – para um debate sobre supostas perdas econômicas e geração de desemprego em um determinado setor. Diversionismo e argumentos “ad terrorem”, estratégia conhecida e repetida globalmente.
Advertências sanitárias
Visando a impedir a eficácia da medida sanitária dos avisos gráficos, em 2001, quando o governo brasileiro obrigou pela primeira vez a inclusão de advertências com fotos nas embalagens dos produtos de tabaco, algumas empresas passaram a promover a venda de cigarreiras de metal, de capas para os maços e de outros artefatos para induzir o fumante a cobrir as advertências. Também passaram a inserir pequenos panfletos com superfície autocolante com propaganda da marca, no mesmo formato e tamanho das advertências sanitárias para o mesmo fim. No âmbito judicial, questionaram, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3311) a Confederação Nacional da Indústria (CNI), órgão sindical que representa a Souza Cruz e a Philip Morris Brasil, a constitucionalidade da obrigação do uso de imagens de advertências nas embalagens e peças publicitárias, sob o argumento de que as advertências seriam contrapropaganda e que a ANVISA não teria competência para definir as imagens e mensagens.
Proibição de aditivos
Conforme esclarecem sanitaristas do Instituto Nacional de Câncer do Ministério da Saúde, “desde o final de 2010, o Brasil tenta colocar em prática a diretriz da CQCT-OMS de restringir o uso de aditivos em cigarros e produtos similares aprovada pela 4º sessão da Conferência das Partes da CQCT-OMS (COP4) no Uruguai, em 2010”. A Souza Cruz ajuizou ação, já julgada improcedente (Apelação cível 2004.51.01.004975-0, Sexta Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Relator Frederico Gueiros, 24 de maio de 2009), questionando as determinações da RDC nº 335/03, da ANVISA.
Além disso, o Sindicato da Indústria do Fumo do Rio Grande do Sul, a Souza Cruz e a Philip Morris, através das ações de n. 2008.71.00.026898-0 (2ª Vara Federal de Porto Alegre), 2008.51.01.023632-3 (3ª Vara da Justiça Federal do Rio de Janeiro) e 2009.51.01.006952-6 (Justiça Federal do Rio de Janeiro), pretendem suspender as determinações da RDC 54/2008, da ANVISA. Somente a ação da Souza Cruz foi julgada procedente em parte, para eximir a empresa de usar a mensagem “Perigo”. As demais foram julgadas improcedentes, e todas transitaram em julgado. Há ainda ação (0007468-39.2017.4.01.3400, na Justiça do Distrito Federal e Territórios) em que a Souza Cruz pretende a declaração de ilegalidade e inconstitucionalidade da determinação do artigo 3º, § 6º, da Lei nº 9.294/96 (alterado em 2011), que determinou a impressão de texto de advertência adicional ocupando 30% da parte inferior da face frontal das embalagens de produtos de tabaco.
Ainda, em 2012 a ANVISA publicou a Resolução RDC nº 14/2012, que proibiu a importação e a comercialização de produtos fumígenos derivados do tabaco que contenham aditivos com efeito e objetivo de realçar o sabor ou o aroma do produto. A norma administrativa, entretanto, nunca chegou a gerar efeitos práticos, pois restou suspensa por decisões judiciais de diferentes instâncias.
Objeto de ação direta de inconstitucionalidade (ADI nº 4874/DF), ajuizada pela CNI, o julgamento no STF culminou na manutenção da Resolução nº 14/2012, mas o placar de 5 (cinco) votos a 5 (cinco) levou a Corte a considerar a decisão como não vinculante às demais instâncias, o que permitiu a manutenção de outras decisões de graus inferiores pela suspensão da norma da ANVISA.
As consequências das condutas das demandadas sobre a população brasileira e, em consequência, o Sistema Único de Saúde:
A presente demanda, por limitações processuais e materiais, não admitirá a promoção de uma efetiva reparação total dos prejuízos gerados, até porque se tratam de doenças e perda de vidas, situações que não podem ser precificadas.
Assim, a ação é uma mera tentativa de recomposição parcial, especialmente sob o viés econômico para o Estado. Ao final, como será delineado nos pedidos, também se busca uma condenação em dano moral coletivo, em vista de toda a conjuntura aqui descrita, nesse ponto confiando no prudente arbítrio do Poder Judiciário.
² As estratégias das requeridas foram efetivas, visto que somente em 2011 alterou-se a Lei Federal nº 9.294/96 (art. 2º), para não mais permitir os fumódromos, sendo que a respectiva regulamentação veio apenas em 2014, quando de fato a disposição legal começou a gerar efeitos práticos. Antes disso ainda, quando legislações municipais e estaduais buscaram vedar o fumo em locais fechados de utilização coletiva, a indústria do tabaco e grupos de frente por si apoiados e patrocinados se opuseram fortemente, utilizando-se de lobby e das demais estratégias já conhecidas e mencionadas, como a judicialização, empregada contra legislações estaduais, entre os anos de 2008 e 2009.