- CONVENÇÃO-QUADRO PARA O CONTROLE DO TABACO E SUA APLICABILIDADE
- Diretrizes constitucionais do direito à saúde
- Da responsabilidade civil das rés em sua modalidade objetiva
- Da responsabilidade civil das rés em sua modalidade subjetiva
- Da aplicação dos artigos 186, 187 e 927 do Código Civil
- Da responsabilidade civil das rés diretamente pela violação do princípio da boa-fé, mesmo antes do novo Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor
- Nexo causal epidemiológico
- Precedentes internacionais de responsabilidade civil das rés desta ação
- DA RESPONSABILIDADE CIVIL DAS RÉ E DEVER DE REPARAÇÃO
- DA LIQUIDAÇÃO E APURAÇÃO DOS DANOS
- CONCLUSÃO E PEDIDOS
CONVENÇÃO-QUADRO PARA O CONTROLE DO TABACO E SUA APLICABILIDADE
A Convenção-Quadro para Controle do Tabaco (CQCT) é o primeiro tratado internacional de saúde pública da história da Organização Mundial da Saúde. Representa um instrumento de consenso entre 192 países membros da Assembleia Mundial da Saúde em resposta à epidemia do tabagismo em todo o mundo. Uma vez que nosso país já era reconhecido internacionalmente pela sua liderança no controle do tabagismo, o Brasil coordenou o processo de elaboração da Convenção durante os anos de 1999 a 2003. Em 27 de outubro de 2005, a adesão do Brasil à CQCT foi formalmente ratificada pelo Senado Federal e a implementação das suas medidas passou a constituir a Política Nacional de Controle do Tabaco.
Para os fins desta demanda, merecem destaque os seguintes consensos internacionais, presentes no Preâmbulo da CQCT:
a propagação da epidemia do tabagismo é um problema global com sérias consequências para a saúde pública;
a ciência demonstrou de maneira inequívoca que o consumo e a exposição à fumaça do tabaco são causas de mortalidade, morbidade e incapacidade e que as doenças relacionadas ao tabaco não se revelam imediatamente após o início da exposição à fumaça do tabaco e ao consumo de qualquer produto derivado do tabaco;
muitos de seus compostos e a fumaça que os cigarros produzem são farmacologicamente ativos, tóxicos, mutagênicos, e cancerígenos, e a dependência ao tabaco é classificada separadamente como uma enfermidade pelas principais classificações internacionais de doenças;
há elevado aumento do número de fumantes entre crianças e adolescentes, assim como se começa a fumar em idades cada vez menores.
Sobre a relação da CQCT com a temática de direitos humanos, interessante notar que decisões de Cortes Supremas da Costa Rica e Peru já reconheceram tal ligação.
Dentre as diversas medidas adotadas, destaca-se:
Artigo 19:
Responsabilidade: 1. Para fins de controle do tabaco, as Partes considerarão a adoção de medidas legislativas ou a promoção de suas leis vigentes, para tratar da responsabilidade penal e civil, inclusive, conforme proceda, da compensação.
Diretrizes constitucionais do direito à saúde
CF/88, Artigo 6º
São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
CF/88, Artigo 196
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
O que pretende a ação é mudar a relação custo do Estado-agente causador do dano, de modo que este, e não mais a sociedade, suporte o ônus e o custo desta despesa.
Da responsabilidade civil das rés em sua modalidade objetiva
O estudioso do tema da responsabilidade civil é capaz de identificar, em seu desenvolvimento recente, uma ampliação das hipóteses de responsabilização objetiva. Isso significa dizer que o ato ilícito deixou de figurar como pressuposto necessário para a obrigação de indenizar, em determinadas hipóteses, especialmente quando presentes bens jurídicos protegidos pela Constituição, tais como o meio ambiente, a saúde e a defesa do consumidor.
Vejamos:
1. Pelo risco da atividade:
o Código Civil brasileiro é bastante claro ao responsabilizar objetivamente as empresas cujos produtos, ou a própria atividade desenvolvida, causam danos a terceiros.
Nesse sentido são os artigos 927, parágrafo único, e 931. No caso do cigarro, uma série de externalidades negativas são produzidas, advindo daí a expressão ‘privatização de lucros e socialização de perdas’. Com a aplicação do princípio da responsabilidade procura-se corrigir este custo adicionado à sociedade, impondo-se sua internalização. Exemplo da aplicação desse princípio constitui a responsabilidade civil objetiva pelo dano ao meio ambiente (art. 14, § 1º, da Lei n. 6.938/81, recepcionado pelo art. 225, §§ 2º e 3º, da CF/88), fundada no princípio do poluidor-pagador, que obriga o empreendedor de atividade arriscada a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade, incorporando a seu processo produtivo os riscos decorrentes da atividade que desenvolve.
Outro exemplo encontra-se no Direito Previdenciário. No art. 120 da Lei n. 8.213/91 admite-se ação regressiva visando ao ressarcimento, para os cofres públicos, dos gastos com o pagamento de benefícios previdenciários oriundos de acidente de trabalho causado pela negligência do empregador quanto à observância das normas de segurança e higiene do trabalho.
2. Pelo risco da empresa ou do empreendimento:
a responsabilidade civil objetiva aqui tratada também advém do próprio produto posto em circulação. Nos termo do já referido art. 931 do CC: “Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação.”Repita-se que nesta ação não se está falando de direito consumerista, pois a União não consome cigarro e não adoece, não sendo o ponto final de uma cadeia comercial de consumo.
Assim, não se está tecendo qualquer juízo de valor sobre se o produto é defeituoso ou não. Aqui se está afirmando que quem arca com o risco do empreendimento é o próprio empreendedor e não terceiros, sob pena de haver um verdadeiro enriquecimento ilícito das demandadas, vedado pelo art. 884 do Código Civil: “Art. 884 – Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.”
Em outras palavras, ao não assumirem um ônus que deveria ser seu, as demandadas terminam transferindo-o ao contribuinte.
Da responsabilidade civil das rés em sua modalidade subjetiva
Sob o prisma da responsabilidade subjetiva, analisa-se a conduta das demandadas através dos anos.
Da violação ao direito à informação das pessoas
CF/88: Art. 5º, XIVº
é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;
CF/88: Artigo 170
A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) V - defesa do consumidor.
Da violação aos princípios da boa-fé e da solidariedade
CF/88: Art. 1º, caput e inciso III
que trata do Estado Democrático de Direito e da dignidade da pessoa humana, e art. 3º, I, que aborda o princípio da solidariedade
CF/88: Art. 3º, I
que aborda o princípio da solidariedade;
Da violação, ainda, aos direitos consumeristas
CDC, Art. 6º
São direitos básicos do consumidor: [...] III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; [...].
CDC, Art. 8º
Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito. [...]
CDC, Art. 12
O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.
CDC, Art. 37
É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.
§ 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.
§ 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.
Da previsão normativa da Lei Orgânica da Saúde
Para além do acima descrito, deve-se atentar ainda para a disciplina da norma do art. 2º, caput e § 2º, da Lei n. 8.080/1990, que regulou o próprio Sistema Único de Saúde (SUS), e segundo a qual:
Art. 2º
A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
§ 1° O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.
§ 2° O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade.
Não é demais relembrar que, nos Estados Unidos da América, a conduta das demandadas, juntamente com outras produtoras de cigarros, restou enquadrada no RICO Act (Racketeer Influenced and Corrupt Organizations Act), destinado a responsabilizar organizações criminosas.
Da aplicação dos artigos 186, 187 e 927 do Código Civil
O importante para esta demanda reside numa singela constatação: tanto no regramento civil de 1916 (art. 159), como no de 2002 (art. 186), a causação de prejuízo a outrem, por meio de ação ou omissão voluntária, traz a obrigação de reparar o dano. Da mesma forma, ainda que não acolhida a subsunção de todas as condutas desviadas das demandadas como ato ilícito em si, na definição do art. 186 do Código Civil, não há como escapar de classificá-las como abusivas, nos termos em que delineado o ato ilícito abusivo do art. 187 do Código Civil:
Art. 187
Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” E da conjugação do art. 186 e/ou do art. 187 com o art. 927 do Código Civil, tem-se a responsabilidade. Veja-se: Art. 927, caput: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”
E da conjugação do art. 186 e/ou do art. 187 com o art. 927 do Código Civil, tem-se a responsabilidade.
Art. 927, caput
Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Da responsabilidade civil das rés diretamente pela violação do princípio da boa-fé, mesmo antes do novo Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor
O princípio da boa-fé sempre norteou o Direito, sendo que já “a tradição romanística considerou a fides bona como uma virtude ética consistente na honestidade do agir, contraposta ao dolus e à fraus”.
Diante da publicidade massiva que estimulava o consumo e não o conectava com possíveis males, ocorrera uma espécie de desinformação do público-alvo. Ainda, contraria a boa-fé promover publicidade que crie expectativas de liberdade, saúde e sucesso, para produtos que, notoriamente, causam males à saúde, como já sabiam as próprias empresas que detinham importante informação que ocultaram do consumidor leigo. Tais informações só vieram a ser acessíveis em meados dos anos 90, por meio de vazamento de informações secretas de posse da indústria do tabaco. Além disso, até hoje, não há informação qualificada. O consumidor pode saber que fumar faz mal, mas não sabe que fumar mais de 30 a 40 cigarros por dia significa 85% de chances de câncer.
Ao fim, mesmo que se entenda que os princípios da boa-fé e da solidariedade somente podem ser aplicados a partir do advento da Constituição Federal de 1988, é de se notar que nem assim as demandadas estariam desobrigadas do seu dever de reparação, justamente pela retroatividade mínima das normas constitucionais, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal, de que é exemplo o RE 140.499.
Pensões especiais vinculadas a salário mínimo. Aplicação imediata a elas da vedação da parte final do inciso IV do artigo 7º da Constituição de 1988. Já se firmou a jurisprudência desta Corte no sentido de que os dispositivos constitucionais têm vigência imediata, alcançando os efeitos futuros de fatos passados (retroatividade mínima). Salvo disposição expressa em contrário - e a Constituição pode fazê-lo -, eles não alcançam os fatos consumados no passado nem as prestações anteriormente vencidas e não pagas (retroatividades máxima e média). Recurso extraordinário conhecido e provido (g.n.).
Importante considerar que, no que diz respeito à promoção da saúde, há quase trinta anos vigora dever legal das empresas de garantir esse direito fundamental do ser humano por meio da “formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos” (Lei Federal n. 8.080/90, art. 2º). Ou seja, para além do princípio geral de boa-fé, que é milenarmente inerente ao Direito, existe um dever legal específico para as empresas relacionado à colaboração na prevenção de doenças.
A integridade do erário constitui bem jurídico constitucionalmente tutelado, e o comando dirigido à proteção do patrimônio público está firmemente sinalizado pelo §5º do art. 37 da Constituição Federal, que, ao tratar do estabelecimento de prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente que causem prejuízos ao erário, ressalva as ações de ressarcimento.
Nexo causal epidemiológico
1. Do nexo causal:
No direito brasileiro, o Código Civil prescreve em seu Art. 403 que,
Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.
A aplicação da chamada teoria do dano direto e imediato tem sido um dos fundamentos utilizados para que diversas ações individuais ingressadas por fumantes tenham resultado negativo, já que as Cortes entendem que, no caso concreto, não se pode determinar, com precisão, uma relação de causa e efeito. O acolhimento irrestrito da tese da indústria, no entanto, tem levado a um absurdo lógico: levando-se a sério as conclusões da ciência médica que demonstram que determinadas doenças (especialmente as pulmonares) estão necessariamente vinculadas ao vício do fumo num percentual que por vezes se situa entre 80 e 90% dos casos, conclui-se coerentemente que de cada cem portadores de tais doenças e que também sejam fumantes, entre 80 e 90 indivíduos a contraíram em razão do vício de fumar. A contrário sensu, os outros 10 a 20 indivíduos desenvolveram a doença em razão de outros fatores, que não o tabagismo. É quase impossível afirmar-se, categoricamente, quais dessas cem pessoas se encontram num grupo ou no outro.
Isso não abala, porém, a certeza científica de que abstratamente 80 a 90% das pessoas realmente desenvolveram a doença em razão do tabagismo. Inequívoco, portanto, o nexo de causalidade científico e irrefutável entre a conduta (consumo do produto) e o efeito (desenvolvimento da doença). Todavia, se todas essas cem pessoas ajuizassem ações individuais, a invocação da tese defensiva faria com que todas as cem pretensões fossem desacolhidas. Para se evitar que a indústria do fumo seja injustamente condenada num percentual de 10 a 20% das causas, prefere-se injustamente desacolher as justas pretensões de 80 a 90% dos autores. A fragmentação dos litígios, portanto, favorece amplamente a indústria do fumo com esse absurdo lógico e de intuitiva injustiça, com a qual não se pode concordar.
2. Do nexo causal epidemiológico:
O nexo causal epidemiológico ainda é algo novo em nosso ordenamento, mas em locais como os Estados Unidos da América, ele já possui uma aceitação ampla. Exemplo disso é o próprio guia referencial de epidemiologia (Reference Guide on Epidemiology), elaborado pelo Federal Judicial Center, que tem por objetivo auxiliar juízes em casos que envolvam evidências técnicas e complexas.
No Brasil, o exemplo mais claro dessa incorporação é o chamado Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário (NTEP), previsto na Lei n. 8.213/91.
Art. 21-A
A perícia médica do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) considerará caracterizada a natureza acidentária da incapacidade quando constatar ocorrência de nexo técnico epidemiológico entre o trabalho e o agravo, decorrente da relação entre a atividade da empresa ou do empregado doméstico e a entidade mórbida motivadora da incapacidade elencada na Classificação Internacional de Doenças (CID), em conformidade com o que dispuser o regulamento.
§ 1º A perícia médica do INSS deixará de aplicar o disposto neste artigo quando demonstrada a inexistência do nexo de que trata o caput deste artigo
No caso dessa legislação previdenciária, ainda se admite a prova em contrário, uma vez que o nexo causal é presumido pela natureza da atividade, em comparação com a lesão sofrida. No caso dos autos, por sua vez, incontáveis estudos já estabeleceram a correlação entre as doenças cujos efeitos se busca reparar e o consumo ou contato com cigarros, portanto não se trata de nenhuma presunção, mas de uma relação de causalidade já sedimentada em âmbito científico e reconhecida por inúmeras instituições.
Sob outro prisma, em se tratando de nexo causal apurado por outros ramos da ciência, é de se notar que suas conclusões devem ser assimiladas pelo direito, não sendo outro o entendimento do próprio STF, como se viu no caso do amianto (ADI 4066, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 24/08/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-043 DIVULG 06-03-2018 PUBLIC 07-03-2018)
Para além do estabelecimento do nexo causal epidemiológico, uma segunda utilização da Epidemiologia no caso aqui tratado é na mensuração do percentual de pessoas que, acometidas por uma doença, desenvolveram tal enfermidade em virtude do consumo de cigarros. Como será melhor desenvolvido quando tratado especificamente da liquidação, a epidemiologia calcula a chamada fração atribuível populacional, ou seja, o percentual de pessoas acometidas por uma enfermidade que desenvolveu essa em consequência de um fator de risco (no caso, consumo ou contato a fumaça de cigarros), como quais os montantes que o tratamento dessas doenças implicam para os sistemas de saúde.
Precedentes internacionais de responsabilidade civil das rés desta ação
Estados Unidos da América
O primeiro e referencial precedente: antes de 1994, nenhum indivíduo ou grupo de fumantes havia obtido êxito em processos judiciais no país por danos à saúde causados pelo fumo. Em 1994, o Estado do Mississippi tornou-se o primeiro estado a processar diretamente as principais empresas de cigarros (dentre elas Philip Morris e British American Tobacco), sob a alegação de que as doenças atribuíveis ao tabaco causavam dano ao Estado, na medida em que este era obrigado a pagar pelos cuidados médicos, instalações e serviços necessários para os cidadãos cuja saúde fora afetada pelos cigarros produzidos pelas rés. Posteriormente a 1994, outros estados federados ajuizaram ações semelhantes. Conforme as datas dos julgamentos de vários processos estaduais se aproximaram, as empresas firmaram acordos para evitar condenações. Primeiro no Mississippi, depois na Flórida e no Texas, resultando em acordos nos quais as requeridas concordaram em pagar bilhões de dólares em ressarcimento a esses estados.
Em 23 de novembro de 1998, as principais empresas de cigarros firmaram o maior e principal acordo nos Estados Unidos, o Master Settlement Agreement (MSA), com os outros estados, o Distrito de Colúmbia, Porto Rico e quatro outros territórios dos EUA. Pelo MSA, as companhias concordaram em fazer pagamentos anuais aos estados, em valores proporcionais às suas respectivas participações no mercado de cigarros (market share) e em perpetuidade. Também de acordo com o MSA, as empresas concordaram em dissolver várias organizações que haviam sido utilizadas como meio de promoção de informações falsas, além de assentirem em não se opor a uma série de leis e regulamentos de saúde pública.
Em setembro de 1999, menos de um ano após haver sido firmado o MSA com os estados da Federação, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos da América, na esfera federal, ajuizou uma ação contra as principais empresas de cigarros perante o juízo do Distrito de Colúmbia, alegando que as mesmas haviam violado um estatuto federal, o já mencionado Racketeer Influenced and Corrupt Organizations Act (RICO Act); em tradução livre, algo como: Lei de Organizações Corruptas e Dedicadas à Extorsão. Após nove meses de julgamento, com a oitiva de 84 testemunhas e a apresentação de milhares de páginas de provas documentais, a juíza Gladys Kessler emitiu a sua sentença condenando as principais empresas de cigarros. Em uma sentença de 1.683 páginas, a magistrada detalhou como as empresas comercializaram e promoveram os seus produtos letais de forma fraudulenta, com foco unicamente no sucesso financeiro, sem considerar os respectivos custos sociais.
Em maio de 2009, o Tribunal de Apelações do Distrito de Colúmbia confirmou, por unanimidade, as conclusões da sentença. Entretanto, apesar das conclusões contundentes e exaustivas quanto às más condutas das empresas de cigarros e do imenso dano causado, o Tribunal de Apelações decidiu que, devido ao fato de o RICO Act permitir apenas sanções orientadas para o futuro, de forma a prevenir violações da respectiva lei, decidiu-se que algumas das sanções requeridas pelo Departamento de Justiça não poderiam ser impostas, incluindo a restituição dos lucros obtidos com base nas fraudes e a imposição de penalidades monetárias. De ressaltar-se que a negativa da imposição dessas sanções se deveu única e exclusivamente às limitações formais relativas ao tempo impostas pelo RICO Act, não estando vinculada a qualquer dúvida sobre a culpabilidade das empresas de cigarros ou a uma suposta falta de provas sobre as consequências das suas condutas, considerada fraudulentas e violadoras da legislação norte-americana sobre organizações destinadas ao cometimento de fraudes.
Províncias do Canadá, Estados da Nigéria e da Coreia do Sul
Também processaram fabricantes de cigarros, valendo notar que, assim como os Estados Unidos da América, a Coreia do Sul e o Canadá também são conhecidos por zelarem pela liberdade econômica, característica que já não assiste a Nigéria
Saiba mais sobre este e outros casos internacionais em
DA RESPONSABILIDADE CIVIL DAS RÉ E DEVER DE REPARAÇÃO
Uma vez esclarecidas as bases para a responsabilização das demandadas em sede civil, tanto na sua modalidade objetiva como subjetiva, passa-se à questão da reparação do dano causado à sociedade como um todo e, de modo particular, à União.
DOS DANOS MATERIAIS
Art. 509 do CPC
Quando a sentença condenar ao pagamento de quantia ilíquida, proceder-se-á à sua liquidação, a requerimento do credor ou do devedor: I – por arbitramento, quando determinado pela sentença, convencionado pelas partes ou exigido pela natureza do objeto da liquidação; (...)
DOS DANOS MORAIS COLETIVOS
Para tais fins, a Lei nº 7.347/85 previu o chamado Fundo de Defesa de Direitos Difusos, nos seguintes termos:
Art. 13
Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados.
DA LIQUIDAÇÃO E APURAÇÃO DOS DANOS
No que toca ao an debeatur, o pedido de ressarcimento dos valores despendidos pela União com o tratamento de doenças atribuíveis ao cigarro está delimitado:
1
através do rol de doenças cujos gastos com tratamentos se busca o ressarcimento, nas quais se tem, cientificamente comprovada, a relação causal com o consumo ou a exposição à fumaça do cigarro;
2
pela determinação de que somente os danos causados pelos produtos das demandadas serão objeto de pedido ressarcitório;
3
pela circunscrição da pretensão tão somente ao ressarcimento dos danos impingidos à União com o custeio do tratamento de tais enfermidades – não incluídos, portanto, eventuais danos aos erários estaduais e municipais;
4
pela observância do prazo prescricional, a ser contado retroativamente a partir da data do ajuizamento desta ação.
No que toca ao quantum debeatur, será necessário averiguar em fase própria futura, de liquidação de sentença, a ser processada nos termos do art. 509, II, do Código de Processo Civil. Para o momento, tem-se necessário demonstrar a viabilidade dessa futura quantificação do dano a ser ressarcido, o que se vislumbra a partir das seguintes proposições:
a.
do conhecimento das informações referentes aos gastos anuais da União com saúde e, em específico, com o tratamento das doenças causadas pelo consumo de – ou contato com – cigarros;
b.
da fixação do percentual da “fração atribuível populacional” ao consumo de cigarros produzidos pelas demandadas, em relação a cada doença aqui mencionada
c.
da existência de métodos científicos que quantificam os gastos com saúde por decorrência de doenças atribuíveis ao tabaco (e, dentre esses os relacionados a cigarros) e que poderão ser utilizados como modelo metodológico;
d.
pela viabilidade de se fixar, de forma equitativa, a proporção com que cada demandada deverá arcar nos pagamentos relativos ao ressarcimento à União, a partir da teoria do market share, ou seja, de acordo com a fatia de mercado que coube ou hoje cabe a cada uma ou, subsidiariamente, com base na responsabilidade solidária;
e.
da existência de diferentes precedentes internacionais análogos, sobretudo nos Estados Unidos da América, nos quais os grupos econômicos ora demandados, inclusive, firmaram acordos para se submeter ao pagamento de quantias a entes políticos, estipuladas a partir de determinadas fórmulas de cálculo.
Na apuração do percentual do market share a ser aplicado na liquidação, o julgador(a) poderá eleger o período que achar mais razoável para individualizar a responsabilização das demandadas, bem como eleger um parâmetro de ressarcimento para gastos passados e futuros. Um padrão que pode ser adotado consiste no cálculo da média aritmética do market share de cada empresa ré a partir do ano em que as filiais começaram a atuar, concomitantemente, no mercado brasileiro até o ano de ocorrência do dano.
- Philip Morris Brasil: iniciou as suas atividades em 1975.
- Souza Cruz: já atuava no Brasil desde o início do século XX.
Quanto ao consumo de cigarros falsificados, isso também pode ser levado em consideração pela utilização da teoria do market share, dependendo da metodologia utilizada nesse cálculo (ou seja, se incluir ou não o mercado ilegal), ou senão pode ser descontado em separado posteriormente.
De qualquer maneira, não serão as empresas rés responsabilizadas pelo consumo de cigarros falsificados. Nada obstante, caso este Juízo não entenda adequada a aplicação da doutrina da responsabilização pelas fatias de mercado, a União requer a condenação das rés em regime de solidariedade, nos termos do art. 942 do Código Civil de 2002.
CONCLUSÃO E PEDIDOS
A União requer a procedência da ação, para condenar as rés:
1
à obrigação de indenizar a União por meio de pagamentos destinados ao Fundo Nacional de Saúde, pelos gastos com o tratamento das doenças causadas ou agravadas pelo consumo e/ou exposição à fumaça de cigarros, exclusivamente em relação àqueles produzidos e comercializados pelas requeridas, em relação aos 5 (cinco) anos anteriores ao ajuizamento da demanda, como, periodicamente, enquanto se verificarem os danos causados por tais produtos.
2
ao pagamento de indenização por danos morais coletivos.