
A ação civil pública é uma das mais relevantes iniciativas de controle de tabaco no âmbito do Poder Judiciário brasileiro, em razão de seu caráter coletivo, voltado a apurar os danos suportados pelo sistema público de saúde, além de danos morais coletivos causados a toda sociedade brasileira.
Mesmo que a relação entre o tabagismo e inúmeras doenças seja um consenso médico e científico, a indústria do tabaco tem conseguido se esquivar de suas responsabilidades legais. De alguns anos para cá, entretanto, várias iniciativas têm conseguido, por meio de acordos e sentenças judiciais, impor o dever de reparação de danos à indústria do tabaco.
Ainda assim, há muito a ser feito. A indústria do tabaco, nacional e internacionalmente, é reconhecida por interferir em políticas públicas efetivas para o controle do tabaco, com o objetivo de retardar, desencorajar, enfraquecer e até impedir a sua adoção e implementação.
A Organização Mundial de Saúde reconhece que a indústria do fumo tenta interferir no direito dos países de proteger a saúde das pessoas, levando os governos aos tribunais ou oferecendo incentivos financeiros para poder influenciar as políticas de controle do tabaco.
O Índice Global de Interferência da Indústria do Tabaco de 2023 mostra que medidas de saúde pública estão cada vez mais vulneráveis à influência de empresas que vendem cigarros e produtos relacionados ao fumo, e que a indústria do tabaco intensificou sua interferência nas políticas de saúde pública.
A interferência da indústria do tabaco nas políticas de saúde pública ocorre por diferentes estratégias, seja no Poder Legislativo e no Poder Executivo, por meio de lobby, seja no Poder Judiciário, com intensa litigância para evitar qualquer responsabilização e para obstar normas que veiculam políticas de controle do tabaco.
Uma das formas usadas para evitar responsabilização em processos coletivos, sobretudo em jurisdições internacionais, é inundar o processo com documentos, drenando tempo, esforços e dinheiro de governos, da sociedade civil, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do próprio sistema de justiça.
No caso da ação civil pública movida pela União, em face das maiores fabricantes de cigarros do país e de suas matrizes internacionais, isso parece estar ocorrendo. Em razão da atuação das empresas, o processo já acumula mais de 40 mil páginas, entre petições, pareceres e documentos. O caso ainda tramita em primeira instância. Imagine-se o tamanho que o processo terá em grau de recurso no Tribunal Regional Federal e, eventualmente, ao STJ e ao STF.
Esta prática está longe do que se compreende por direito de petição, ampla defesa e contraditório, e pode vir a representar reais empecilhos para a devida prestação jurisdicional, sobretudo em cenário no qual o Poder Judiciário conta com recursos escassos e inconteste excesso de trabalho.
Tal como configurada, dificultando e atrasando a devida prestação jurisdicional, esta prática pode ser considerada uma forma de interferência da indústria do tabaco para a efetividade do artigo 19, da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco.
"1.
Para fins de controle do tabaco, as Partes considerarão a adoção de medidas legislativas ou a promoção de suas leis vigentes, para tratar da responsabilidade penal e civil, inclusive, conforme proceda, da compensação".Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco
O Estado brasileiro, juntamente com os demais Estados que ratificaram a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco da Organização Mundial da Saúde, tem a obrigação de proteger suas políticas de saúde dos interesses comerciais da indústria do tabaco e daqueles que defendem os seus interesses, conforme o artigo 5.3 e as Diretrizes para a sua implementação.
"3.
Ao estabelecer e implementar suas políticas de saúde pública relativas ao controle do tabaco, as Partes agirão para proteger essas políticas dos interesses comerciais ou outros interesses garantidos para a indústria do tabaco, em conformidade com a legislação nacional."Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco
Na tentativa de congestionar a leitura e impor sua força econômica, as rés juntam 43 pareceres ao processo – inclusive alguns repetidos – sem mencionar inúmeros relatórios e estudos que somam milhares de páginas.
Confira no infográfico abaixo a quantidade de pareceres juntados ao processo, bem como os respectivos pareceristas de cada uma das empresas.